domingo, 21 de junho de 2009

Totonha

Nunca cheguei a saber como nasci, como e quem me fez. Só me dei conta que eu existia, quando vi, ao meu lado, numa banca de feira, coisas parecidas comigo. Parecidas sim, mas não iguais. Tinham cabeças arredondadas, maiores ou menores, mas fundas e com cabos bem mais longos do que o meu. Só soube do meu uso, depois que alguém me levou para casa, carregando-me em riste como um troféu. Agora eu sei quem sou e estou contente.

Estou aprendendo a distinguir os sabores, os cheiros e o roteiro de minhas intervenções nas panelas desta tal Tônha, a quem tanto se dirige a mulher sem nome que me comprou na feira. Sem nome ou muitos nomes? A criançada vem correndo pela cozinha roubando guloseimas e a chamam mãe, mamãe, manhêee. O único homem que raramente passa por aqui diz “querida”, e ela atende. Mas um nome ela deve ter: quando fala com Antônia, Antônia responde sempre “Sim senhora” ; às vezes diz “Dona....” mas depois de dona fala alguma coisa incompreensivel como se a própria Antônia não soubesse o que é, pois enrola a língua e só pronuncia umas últimas letras, ...rela,...mela,...gela, sei lá.

É aquela senhora-querida-mãe-manhee que passa pela grande vasilha de louça onde eu moro junto com espumadeiras, conchas e peneiras; me tira de lá, me recoloca, cabo adentro, cabeça para fora, e reclama:
“Tônha, essa não é uma colher de pau qualquer, é uma espátula de madeira!”
“Sim senhora”
“Já disse Tônha, que se você coloca minha espatula com a cabeça para dentro, ela nunca vai secar direito e acaba mofando justo na parte que entra na minha comida!”
“Sim senhora - e bufa baixinho – chata..”

Mas eu gosto mesmo quando essa Dona-não-sei-o-que me usa para aquele mingau especial que só ela faz. Me pega com suas mão leves, com um jeito muito especial de me segurar com o polegar e o indicador na metade do meu cabo, e, unhas cravadas na palma da mão, os outros três dedos bem enrolados apertadinhos como fossem um tambor, que ela usa para , de vez em quando, dar um impulso mais enérgico ao meu rodopiar dentro da caçarola. E lá vou eu raspando o fundo com minha parte final, reta e mais fina do resto daquele retângulo lisinho e chato, que forma minha cabeça. É muito quente este mingau, mas pelo menos não tão irritante quanto o frigir dos refogados da Tônha. As laterais de minhas bordas catam e empurram para o centro o pouco que começa a grudar nas paredes. Sempre no mesmo sentido, da direita para a esquerda até o centro, da direita para a esquerda até o centro, e vai, e vai; só de vez em quando ela inverte o caminho, mas só uma vez: é quando as bolhas do mingau crescem, se rompem e, bufando soltam o vapor: “pppffff,pppfff. Eu não devo deixar que isto aconteça; é por isto que me invertem o caminho. Se o vapor sai, o mingau engrossa antes da farinha estar cozida. É o meu chchchchtt, chchchtt, no fundo e chchchtt,chchchtt nas paredes, que achatam as bolhas e as anulam. Eu não consigo ver o rosto daquela senhora-manhee-querida, mas sei que quando isso acontece ela está feliz.

Outra coisa que me agrada é que nesse mingau não tem sabores nem temperos diferentes, eles só vão naquilo que – depois – será acompanhamento. Assim me sinto mais limpa, incluso porque a senhora-querida-mãe-manhee, faz questão de me lavar, em muita água corrente: com uma escovinha retira todo o grude, com poquissimo detergente – e rapidamente- esfrega minhas paredes e meus contornos, com seus dedos delicados; é quase uma caricia . Ah, sim, muitas vezes antes de abrir a torneira ela me lambe e estala a língua. Um dia ela chegou a dizer. “É assim que se faz uma boa polenta” e tenho certeza que ela estava sorrindo.

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