domingo, 21 de junho de 2009

Rio São Francisco

Rio São Francisco, 10 de dezembro de 1979.

Minha querida mãe,

Que quando essa carta possa encontrá-la, que a senhora esteja no gozo de sua saúde, amém. Estou escrevendo porque contar no vivo do agora mais não posso, Deus me escuse. A senhora não estando aqui há muito me faz menor que o menino que viu o pai rumando às infindas águas do rio nosso. O que ninguém simulou entender, nem eu, minha mãe, que aqui fiquei só Deus Nosso Senhor um dia pôde saber o racional. Estou velho.
Mas deixe de mim, num átimo. Como estão a mana e o marido, e o menino aí deles? Já deve de estar moço-homem, arranjado em corpo alto de imbuia, estudando as muitas letras. Do mano a senhora sabe? Não sei pr’onde ele foi, que dispois do sucedido com pai mal me dei conta de que ele se tinha ido. Quisera poder ir aonde vosmecês se encontrassem, já que pr’aqui vosmecês nunca hão de voltar, considero.
Sei que o que não foi jamais que há de ser, minha mãe. Que se a senhora nutre amargor no coração eu mais aceite, que fácil não é.
Só espero que nessas curvas todas do mundo a senhora tenha encontrado seu reto caminho. As calmanças. Que sossego é o que a vida pede – mais não precisa. Falta sinto dos ralhos e dos afagos que a senhora quase na penumbra ofertava. Sinto a coisa tanta, minha mãe, que no poço do peito não designo. E só lamento o que outro fazer não posso. E se a funda razão a senhora deseja saber, lhe digo o que eu mesmo já não sei: que talvez foi o rio. O que o rio demanda ninguém desdiz. A alma alguma desorienta o que o rio prossegue.
Fiz o que fiz, minha mãe. Sei que a vida já me passou por todas as rugas da minha cara, e coisa pouca há que indagar. Sei que ela vai me cobrar de volta o que não lhe dei, no real da hora. E que o mais agora é simples demoramento, de esperar. Estou tardando, minha mãe. Com força peço perdão ao que fiz a todos nós, incluso a mim. Estou tardando porque o repente não mais me acomete, nos termos do surpreendente. Nem sei se o que sinto é o nível de tristeza ou de saudade, mas dói como a faca cravada na carne. Estou só como a canoa que conduziu pai até a não-beira do rio.
Sei que assunto tal não é de seu agrado, minha mãe. Por isso lhe digo ele por último, no encerrar da letra, palavra derradeira e certeira. Meu pai, vosso esposo, nunca mais vi nem a sombra dele. Creio que ele foi em busca dos rasos do mundo, que o algum segredo ele devia de saber. Pai era iluminado, mãe? Será que será? Doido: não. Que só é doido quem desconhece a razão. E pai tinha mais razão que a gente, mãe. Agarra nessa que é a verdade mais verdadeira que debaixo do céu se fez, por confiável.
Mais não tenho feito da minha estança. Estou aqui, no somente e no vertente. Reza por mim, minha mãe, que nunca deixei de ser vosso filho. Deus tenha compaixão pela fraqueza nossa e cuide resguardar os idos e os vindos.
Que o rio nosso corra sempre, e muitos peixes encomende. Amém.
Com ternura de amor,

Seu filho.

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