domingo, 21 de junho de 2009

Construção

A mãe a amparava como podia, servindo de apoio para que ela não tombasse a qualquer momento. Ela estava fraca, ainda, mas, se o médico lhe dera alta, é porque ela poderia seguir a sua vida.
Uma enfermeira perguntou à mãe se precisava de ajuda.
– Não, obrigada. – respondeu, a sobrancelha direita arqueada. – Ela está muito bem.
Mas ela mesma sabia que não estava, ainda, ela, Ana Aguiar, que de repente não podia andar sem a ajuda de alguém. A enfermeira, uma senhora negra e gorda e sorridente e com uma aliança de prata na mão direita, entrou por um corredor no qual sumiu, mas ela, Ana Aguiar, ainda ouviu a voz da enfermeira, forte e jovem, cumprimentar uma menina de camisola e rabo-de-cavalo e cadeira-de-rodas que logo apareceu à frente de Ana. A menina sorriu como se ouvir a enfermeira pronunciar alto seu nome fosse um grande motivo de alegria – ela também amparada pela mãe, que a guiava através da claridade sombria dos corredores do hospital.
– Já estamos chegando à porta, filha. – disse a mãe da menina, calma, a compaixão e o amor modulando não só a voz como o jeito lento e delicado de empurrar a cadeira enferrujada.
O chão estava horrivelmente sujo, com algumas manchas escuras que chegavam a formar uma espécie de rastro – alguém deixava seu sangue ali. E ela sentiu seu corpo fraco se retorcer de nojo. Sair dali resolvia pouca coisa na sua vida, ela, que parecia se convencer de que pouca coisa valia a pena na sua vida – mas ela não parecia ter certeza disso. Ela era linda – ainda era? Será que era por isso que todos que passavam lhe atiravam olhares tão surpresos? De repente percebeu como havia tanta gente na entrada do hospital, que aquelas caras lhe reviravam o estômago. De repente lembrou que tinha pânico de hospitais, que não suportava o cheiro de hospitais, que se lembrou do que havia acontecido apenas porque o médico lhe contara pois ela insistira tanto e finalmente quando a mãe foi até sua casa buscar uma troca de roupa para ela sair do hospital ela aproveitou e perguntou e soube que por muito pouco... Sentia as ataduras formigarem a pele, a pele formigando e ardendo, e uma dor estranha no peito, o peito também formigando, a boca, tudo formigando sob o calor de São Paulo, o calor de um dia de verão. Mas a dor passaria, como o medo da morte, como o medo de não dar certo, como o medo de o dinheiro ser insuficiente, como o medo de não conseguir trabalhos por causa da proeminência do osso do nariz cujo nome ela esquecera e por causa da quase ausência de seios, como o medo de que a mãe e a família e as amigas e o namorado que ainda não tinha porque pensava apenas na carreira que teria não sentissem orgulho dela, Ana Aguiar, que inclusive criara esse nome para dar um ar de importância porque havia um trocadilho com águia e ela queria dar um ar poético para o nome que teria na sua carreira que estava em ascensão e já dera algum lucro... Tudo passaria, e ela seria a modelo mais famosa do Brasil e depois atriz e depois iria para New York e depois se realizaria, sim, porque ela tinha planos, muitos, todos eles importantes e urgentes...
O táxi chegou. O motorista abriu a porta. A mãe a amparando. Sempre. Sempre a ampararia. E no fundo sabia que valeu a pena tudo o que fez por ela. Era por ela. Apenas. Foram para casa.

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