domingo, 21 de junho de 2009

Retorno

Estar deitada era uma forma de se manter inteira, ela que há muito tempo se despedaçou. Estar deitada era uma mediocridade, como uma mãe que põe a cabeça inerte do filho no colo e a acaricia. O mundo era silencioso à noite. O coração já se acalmara, agora quase parecia sossegar. O problema eram as mãos, ora pousadas entrelaçadas sobre o peito, ora estendidas ao lado do tronco. Nenhuma das posições a tranqüilizava – estranho aquele persistente cheiro de velas impregnado nas narinas, no ar, em tudo. Mas ainda não havia encontrado a paz necessária para pousar as mãos unidas atrás da cabeça, como fazem aqueles que tiveram um dia feliz e se põem a tentar recuperá-lo. Era difícil admitir – ela não o fazia com palavras, mas seu corpo sabia que ela sabia: estava sofrendo. Chorar já era desnecessário. Da lágrima restou somente a sensação salgada de ter chorado – como alguém que entra no mar e sai dele – mas ele não saiu.
Com o corpo dormente, levantou-se e caminhou até a lua na janela. (Ele nunca mais a veria.)
Abriu o vidro sem qualquer ruído, e nem o vento de junho foi capaz de tirar da pele e do ar a presença das margaridas. Coroas de margaridas, arranjos, o caixão, o rosto dele entre as margaridas. Foi a namorada dele que exigiu, disse uma mulher chorosa ao seu lado. “Eu tinha de retribuir tudo o que ele me deu, eram as flores preferidas dele”, foi o que Pérola disse, a namorada, quando a abraçou. “Perdão, amiga!” E seus olhos secaram.
A mãe também veio abraçá-la. “Oh, Júlia! Por que, minha filha? Por quê?” E ela viu quando a mãe ao erguer a cabeça olhou diretamente para Pérola, a namorada, como um atirador preparando-se para acertar o coração do alvo. “Meu filho, Júlia, meu filho!”, e a abraçou de novo, aquelas duas mulheres de repente provando na carne que o amor dilacera sem piedade. Como o mar o havia dilacerado. Aquelas duas mulheres sofrendo como se ninguém mais no mundo soubesse o que era sofrer. E, naquele momento, elas também se amaram. Mas Júlia não chorou.
Tinha valido a pena? Aquele sacrifício de deixá-lo livre para amar aquela outra... Ele a queria. “Júlia, eu gosto de você, mas eu amo a Pérola. E você é a minha amiga de sempre. A gente cresceu junto, lembra? Você é pra vida inteira.” E ela escolhera, desde então, ser a “vida inteira”. Ela foi “pra vida inteira”. Dona Marta ainda a abraçava, soluçando, já sem palavras, talvez já consciente de que a dor é indizível. Olhou para Júlia, inchada, vermelha e muda, e perguntou se ela queria alguma coisa, pedindo desculpas: “Se fosse você, ele estaria vivo, me desculpa, minha filha, me desculpa”, e Júlia esboçou um sorriso de assentimento. Dona Marta, como se procurasse algo no chão, se afastou e se sentou na cadeira ao lado da cabeceira do caixão. Júlia se aproximou de onde ele estava, a cada passo teve mais certeza de que ele era lindo, como se a rigidez houvesse endurecido a beleza dele. Mas as margaridas empobreciam tudo o que ele era, não era de margaridas que ele gostava mais, era de lírios, empobreciam o ambiente, o ar, as pessoas, tudo, tudo tão pobre e inútil e... e morto. Tudo morto – ele: morto. E foi ao pensar claramente essa palavra como se tivesse talhado uma verdade numa lápide que o ar se tornou insuportável, insuportável, insuportável... Ele não a amava, nunca a amou, não amou a idéia de tê-la como havia tido toda a amizade e a paciência e o carinho e tudo o que ela oferecia nos gestos e na presença, ele amou a Pérola, que o levou para outros lugares, inclusive o mar deserto, ele amou a jóia que a mãe também amou e que agora culpava em quase-silêncio por ter tirado o filho, o único e eterno. E morto. E ela, que não sabia se estava com raiva ou com mágoa ou com saudade... Mas o amava – ele: morto. Não tendo mais o que fazer ali, nem mesmo respirar, saiu daquela sala de velório, impregnada de margaridas, que provavelmente seriam cremadas com ele, e rumou para a noite.
Tomou um táxi e voltou para casa. Sozinha e imensa. Ela e a noite.
Ela – sozinha. Ela e a noite. Amando. Onde quer que ele estivesse, estaria ali – e não estaria mais. Nunca mais. Fechou a janela, cerrou as cortinas, deitou-se novamente. Sabia que outro dia começaria assim que abrisse os olhos. Talvez ainda o amasse – com certeza o amaria por muito tempo. E se lembraria dele, para sempre. Ele, deitado, para sempre, entre as margaridas. Se fosse ela, teria escolhido lírios.

Nenhum comentário:

Postar um comentário