terça-feira, 30 de junho de 2009

EU SÃO PAULO

Sou apenas um – um homem só
do tamanho de um corpo
do tamanho do meu corpo
do tamanho do corpo imenso de uma cidade
sou uma cidade
correndo o tempo todo dentro de mim
o sangue correndo pelas avenidas inquietas
cada célula cada carro cada gente
mais de dez milhões de vidas correndo em mim
nunca parando nunca parando
nem mesmo dormindo eu paro
nem dormindo minha cidade para
na minha terra cinza em que não se planta nada
além de sonhos e de histórias
reconstruídos a cada enchente
minha cidade esculpida a temporais
de cada canto um grito
de cada grito um canto de andorinha
as crianças os cachorros os dejetos
o olhar de lado o olhar de frente o olhar para trás
tudo sempre cabendo no mesmo vão agora
como os que vão mais rápido que a Hora
como os que a retardam
como os que jamais saberão de onde vêm
e que aqui estão
correndo até o cansaço de calor ou frio
correndo de susto de surto ou de furto
apenas isso que é correr
para chegar ao não-limite de ser
e caber no terreno úmido das várzeas
fincar-se sem poder plantar
cada braço um logradouro
cada flor uma despedida
sendo um em mais de dez milhões que me olham
com a indiferença desconcertante do irmão
meu desejo mais terno
minha intermitente desilusão
os carros transitando entre as duas calçadas
do que escrevo
eu que também ergui as raízes do meu sonho em mim
do tamanho imensurável do meu corpo
do tamanho da minha cidade

CAIXA

Sou o que me fecho em cada lado, guardado no escuro do claro, no duro fim em si de ser o que contenho e não ser nada além do que guardo, a sombra do muro que sou. Tenho a forma do que me querem, e assim o que querem é o que quero, toda forma de coração, leve no estar-parado, até mãos ou olhos me ressuscitarem para a ausência de quem sou. Sou o que me são. E não digo mais porque repito. Ninguém se lembra de mim a não ser que eu me abra aos meus segredos. Quando me abro, sou o que procuram em mim -- meu nome é provisório demais para ser meu. E isso é tudo em si, meu estar-compacto em mim.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

O Escrevivendo foi uma descoberta maravilhosa que fiz. Sempre gostei de literatura e sempre me arrisquei escrevendo uma coisa ou outra, mas sempre tive muito medo e vergonha de mostrar meus textos.
Convivendo com vocês perdi completamente o medo de mostrar meus textos e estou muito feliz com isso.
Adorei conhecer todos vocês.
No mais, acho que a poesia abaixo, de Antonio Cícero, agora faz todo sentido para mim.

“Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guarda-se o que se quer guardar.”



Obrigada!

domingo, 28 de junho de 2009

Diálogos imaginários


Quantas vezes me vi sozinha em diálogos imaginários com você.
Seus modos, seu bom gosto e bom senso, a última festa, o cão, o bolo e o tempo. Frases do cotidiano em meio a divagações filosóficas. Seu sorriso sempre nos lábios, suas mãos afagando de leve as minhas.
Diálogos que nunca terminam porque nunca hão de começar, porque estão sempre sendo construídos e reconstruídos todos os dias, aos poucos dentro de mim: na meia luz do quarto, durante o banho demorado do fim da tarde, no meio do telejornal ou na solidão do metrô às nove da manhã de uma segunda-feira.
Palavras, apenas palavras sonhadas, pensadas e sentidas à espera de uma grande oportunidade.

Autobiografia

Sou inglesa, de excelente procedência.
Redonda e funda.
Quieta e imóvel.
Sempre à espera de alguém que me sacuda.
Meu sobrenome é o que contenho.
Altas temperaturas não me abalam.
A poeira me incomoda.
Gosto de marcas de batom e detergente de limão.
A água fria me desperta.
A esponja me faz cócegas.
Mãos descuidadas me derrubam.
O chão me acolhe.
Eu era uma xícara, agora sou caco.

Ecos de mim e do eu


























Ecos de mim e do eu
por maurici et santososososososososos


Ecosecosecosecosecosecosecosecosecosecosecosecosecosecosecosecosecosecos
Demimedoeudemimedoeudemimedoeudemimedoeudemimedoeudemi
medo?


Hoje eu quero amanhecer por que ontem eu, fui. Eu sou ontem a metade do invisível. Minha outra metade ecoa. Não se vê. Voa.
SoulA, sssss - ouA, souAtchim
AsSim, A-sSou. Açougue. Azougue. Estorne. Enfeite. Efeito. Well done.

Bem feito!




Por Isso acordei cedo. Soa bem. The early bird catches the worm. Minha-oca.
Meu presente vem como uma potente azagaia, cruza meu azimute, me deixa azoeirado, mas meu ázimo não me falta.




Minhas impressões não são digitais por que ando côncavo e meu sapato tem salto torto por que ando convexo, comungado. Eu tergiverso.
Ando e converso, ando e consserto, ando e conecto. Ando por perto.
Meus delírios são plurais, meu hálito pleural, minha víscera
vírgulas: espaço e silêncio, Psiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiuuuuuuuuuuuuuuuuuu.
Bzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz.
Venho d´alma, d´água, soul e blues; divago, vagueio, vadio, na tribo urbana, sou um zino.
Sou UM, só unzinho, sozinho.




Ralo como um queijo por que sou um leque. Meu pensamento rala por que sou lépido.
zassssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss
Desesterilizo minhas tetas, que assam através de minhas brotas, metas, trombetas, dotes: Tenho sido abalroado.
Eis minha limitação: Ao nascer deu-me. Ao viver deu-se. Ao morrer foi-me.
Meu aroma é vapor orgânico. Atinge a camada de ozônio. Antônimo.
Meu amor é amora. Demora. Agora, meu calor é amônia. Sinônimo. Hoje eu anuncio: No chá das cinco que tem olho é rei.
errei!



De médico e louco, todo mundo tem um porco.

Não há à antês de palavra másculin
a
Não há à antes de verbo
Há à antes de advérbio de modo
Há à antes de situação de modo
Há à antes de um modificador de substantiv
o
Há à, Aha!
ahahahahahahahahahahahahahahaha




Ecos do ofício.
O rito atualiza o mito.
E eu frito.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Escrevivenciando

Há pouco tempo passei por momentos em minha vida pessoal que me colocaram diante de duas opções, a tristeza e o ressentimento ou o reinventar-se, tentar algo novo. O Escrevivendo aconteceu junto com a vontade de fazer algo diferente, de ser melhor. Sempre temos essas duas escolhas, mas em alguns momentos isso é mais significativo.
Eu não sei do que gosto mais no Escrevivendo, é um conjunto tão rico!! Gabriela e Lívia, que mediação mais complementar e dinâmica, doce e respeitosa! O conjunto dos participantes é lindo!! Sou fã de todos! Simplesmente, adoro ouvir a leitura dos textos de cada um. É realmente um prazer, e confesso tenho vergonha de ler os meus próprios textos, já sou tímida mesmo e estava há muito em estagnação, sem participar de nenhum processo criativo, tenho ainda muita dificuldade em organizar em palavras as idéias que passam pela minha cabeça.
Sou grata por ter conhecido todos vocês! Quero encontrá-los mais! Não esperava pela qualidade do que é escrito e falado aqui, é uma benção poder estar aqui com vocês.
Gratidão é a melhor palavra que pude encontrar para dizer a vocês todos.

Meu Celular

Todos os dias eu vou com ela. Somos inseparáveis!! Sei que ela gosta de mim, me adorna com penduricalhos e tenho um lugar reservado em sua bolsa. Quando sai pode até não levar a bolsa toda, mas EU vou. Eu sempre vou. Às vezes acontece dela me esquecer, nesse dia fico triste, me falta algo e sei que para ela também.
Quando alguém precisa chamá-la eu grito alto ou me chacoalho todo, ela gosta dos dois, que eu grite bem algo e chacoalhe também, é meio desligada, aí ela me pega apressada e me leva para bem próximo da boca, é quando eu escuto sua voz doce perto de mim, sinto sua orelha aquecer ao meu toque, o perfume do seu cabelo, sei que ela está prestando atenção em alguém que não sou eu, mas não me preocupo com essa indiferença. Às vezes, ela pede que apenas chacoalhe, aí me mantém junto do seu corpo, fico tão quentinho!!
Ela me abre várias vezes por dia e até me emprestou sua própria voz para chamá-la.
Só tem uma coisa que não gosto muito, tempos em tempos ela enfia uma coisa na minha traseira, acho meio chato sabe, tudo bem que quando isso acontece sinto minhas energias se refazerem, mas será que não tinha um outro lugar? E o pior é que fico nisso a noite inteira! Seria ótimo se inventassem uma bateria que não acabasse nunca! Mas enfim... paciência!
Ah... com licença.... tem alguém ligando.. Me atende, me atende, por favor me atende.. eu vou explodir... me atende!

segunda-feira, 22 de junho de 2009

“Escrevivendo Máscaras, Rostos e Personas” é um módulo do Projeto de Leitura e Escrita “Escrevivendo” da Casa das Rosas de São Paulo, coordenado por Karen Kipnis. As Oficinas, que acontecem desde 12/05 e irão até 30/06, são ministradas pelas educadoras Gabriela Fonseca e Lívia Barros e tem por objetivo estimular a criação literária por meio da observação e discussão a respeito de diversos objetos artísticos, como textos, imagens, filmes, sons e outros ilimitados! A magia da Oficina é, sem dúvida, o movimento de trocas entre autor e leitor, que se envolvem numa teia de diálogos intensos sobre construção textual, forma, estilo, ideologias... Enfim: entrelaçamentos e entreletramentos na teia infinita da linguagem!
Lívia e Gabi



“Um conto em última análise, se move nesse plano do homem onde a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal, se me for permitido o termo; e o resultado dessa batalha é o próprio conto, uma síntese viva ao mesmo tempo que uma vida sintetizada, algo assim como um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade numa permanência.”

CORTAZAR, Julio,“Alguns Aspectos do Conto”, in:Valise de Cronópio, Pág.150, Editora Perspectiva.

Aula 1: Começamos nossa viagem pela “expressão escrita” no dia 12/05, com alguns micro-contos do livro: “Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século”, organizado por Marcelino Freire. A idéia era criar narrativas á partir de um dos micro-contos, possibilitando inúmeras interpretações e apropriações!
Veja as criações de nossos autores com base neste micro-conto:

Alí, deitada, divagou:
se fosse eu,
teria escolhido lírios.

(Adriana Falcão)

Lívia


Aula 2- “O ponto de vista faz o objeto”: a epígrafe do linguista Saussure nos possibilita refletir sobre as infinitas possibilidades de se interpretar o mundo! A personagem mitológica, Vênus, foi representada por diversos artistas ao longo da história. No encontro do dia 19/05 observamos quatro diferentes representações da deusa e criamos, a partir daí, as nossas próprias “Venuses”! Chequem a criação literária e léxica da Bruna.

Lívia

Aula 3- “Com quem a dor partilharei”: o cocheiro Iona Potapof do Conto “Angústia” de Anton Tchecov tenta comunicar a alguém a dor de ter perdido um filho, mas ninguém o pode ouvir. Angústia: este foi o tema para criação de personagens da terceira aula, em 26/05!

Lívia

Aula 4 – “Cartas aos personagens de Guimarães Rosa”: a leitura do texto “A Terceira Margem do Rio” proporcionou um dilúvio de idéias criativas! Os escreviventes tinham como trabalho, a criação de uma carta que fosse endereçada a um dos personagens do conto. Houve até carta endereçada ao rio!

Gabi

Aula 5- “Totonha e a sabedoria popular”: a leitura do texto de Marcelino Freire fez com que refletíssemos sobre o significado do saber erudito. Totonha recusa-se a ser alfabetizada, ela não vê o porquê da escrita na sua vida. Discutimos sobre a construção de narrativas populares e o uso dos “falares sertanejos”.

Gabi

Aula 6 – “Personagens inusitados”: como expressar o pensamento de um sabonete, um robô espacial, um utensílio de cozinha, uma pedra? O modo como Augusto de Campos dá voz ao concreto em “Cidade” causou furor entre os escreviventes e dividiu opiniões. “Gente! É muito difícil encontrar o ponto de vista do objeto!”, concluiu Rebecca indignada.

Gabi
“Escrevivendo Máscaras, Rostos e Personas” é um módulo do Projeto de Leitura e Escrita “Escrevivendo” da Casa das Rosas de São Paulo, coordenado por Karen Kipnis. As Oficinas, que acontecem desde 12/05 e irão até 30/06, são ministradas pelas educadoras Gabriela Fonseca e Lívia Barros e tem por objetivo estimular a criação literária por meio da observação e discussão a respeito de diversos objetos artísticos, como textos, imagens, filmes, sons e outros ilimitados! A magia da Oficina é, sem dúvida, o movimento de trocas entre autor e leitor, que se envolvem numa teia de diálogos intensos sobre construção textual, forma, estilo, ideologias... Enfim: entrelaçamentos e entreletramentos na teia infinita da linguagem!


Lívia e Gabi

domingo, 21 de junho de 2009

Retorno

Estar deitada era uma forma de se manter inteira, ela que há muito tempo se despedaçou. Estar deitada era uma mediocridade, como uma mãe que põe a cabeça inerte do filho no colo e a acaricia. O mundo era silencioso à noite. O coração já se acalmara, agora quase parecia sossegar. O problema eram as mãos, ora pousadas entrelaçadas sobre o peito, ora estendidas ao lado do tronco. Nenhuma das posições a tranqüilizava – estranho aquele persistente cheiro de velas impregnado nas narinas, no ar, em tudo. Mas ainda não havia encontrado a paz necessária para pousar as mãos unidas atrás da cabeça, como fazem aqueles que tiveram um dia feliz e se põem a tentar recuperá-lo. Era difícil admitir – ela não o fazia com palavras, mas seu corpo sabia que ela sabia: estava sofrendo. Chorar já era desnecessário. Da lágrima restou somente a sensação salgada de ter chorado – como alguém que entra no mar e sai dele – mas ele não saiu.
Com o corpo dormente, levantou-se e caminhou até a lua na janela. (Ele nunca mais a veria.)
Abriu o vidro sem qualquer ruído, e nem o vento de junho foi capaz de tirar da pele e do ar a presença das margaridas. Coroas de margaridas, arranjos, o caixão, o rosto dele entre as margaridas. Foi a namorada dele que exigiu, disse uma mulher chorosa ao seu lado. “Eu tinha de retribuir tudo o que ele me deu, eram as flores preferidas dele”, foi o que Pérola disse, a namorada, quando a abraçou. “Perdão, amiga!” E seus olhos secaram.
A mãe também veio abraçá-la. “Oh, Júlia! Por que, minha filha? Por quê?” E ela viu quando a mãe ao erguer a cabeça olhou diretamente para Pérola, a namorada, como um atirador preparando-se para acertar o coração do alvo. “Meu filho, Júlia, meu filho!”, e a abraçou de novo, aquelas duas mulheres de repente provando na carne que o amor dilacera sem piedade. Como o mar o havia dilacerado. Aquelas duas mulheres sofrendo como se ninguém mais no mundo soubesse o que era sofrer. E, naquele momento, elas também se amaram. Mas Júlia não chorou.
Tinha valido a pena? Aquele sacrifício de deixá-lo livre para amar aquela outra... Ele a queria. “Júlia, eu gosto de você, mas eu amo a Pérola. E você é a minha amiga de sempre. A gente cresceu junto, lembra? Você é pra vida inteira.” E ela escolhera, desde então, ser a “vida inteira”. Ela foi “pra vida inteira”. Dona Marta ainda a abraçava, soluçando, já sem palavras, talvez já consciente de que a dor é indizível. Olhou para Júlia, inchada, vermelha e muda, e perguntou se ela queria alguma coisa, pedindo desculpas: “Se fosse você, ele estaria vivo, me desculpa, minha filha, me desculpa”, e Júlia esboçou um sorriso de assentimento. Dona Marta, como se procurasse algo no chão, se afastou e se sentou na cadeira ao lado da cabeceira do caixão. Júlia se aproximou de onde ele estava, a cada passo teve mais certeza de que ele era lindo, como se a rigidez houvesse endurecido a beleza dele. Mas as margaridas empobreciam tudo o que ele era, não era de margaridas que ele gostava mais, era de lírios, empobreciam o ambiente, o ar, as pessoas, tudo, tudo tão pobre e inútil e... e morto. Tudo morto – ele: morto. E foi ao pensar claramente essa palavra como se tivesse talhado uma verdade numa lápide que o ar se tornou insuportável, insuportável, insuportável... Ele não a amava, nunca a amou, não amou a idéia de tê-la como havia tido toda a amizade e a paciência e o carinho e tudo o que ela oferecia nos gestos e na presença, ele amou a Pérola, que o levou para outros lugares, inclusive o mar deserto, ele amou a jóia que a mãe também amou e que agora culpava em quase-silêncio por ter tirado o filho, o único e eterno. E morto. E ela, que não sabia se estava com raiva ou com mágoa ou com saudade... Mas o amava – ele: morto. Não tendo mais o que fazer ali, nem mesmo respirar, saiu daquela sala de velório, impregnada de margaridas, que provavelmente seriam cremadas com ele, e rumou para a noite.
Tomou um táxi e voltou para casa. Sozinha e imensa. Ela e a noite.
Ela – sozinha. Ela e a noite. Amando. Onde quer que ele estivesse, estaria ali – e não estaria mais. Nunca mais. Fechou a janela, cerrou as cortinas, deitou-se novamente. Sabia que outro dia começaria assim que abrisse os olhos. Talvez ainda o amasse – com certeza o amaria por muito tempo. E se lembraria dele, para sempre. Ele, deitado, para sempre, entre as margaridas. Se fosse ela, teria escolhido lírios.

Rio São Francisco

Rio São Francisco, 10 de dezembro de 1979.

Minha querida mãe,

Que quando essa carta possa encontrá-la, que a senhora esteja no gozo de sua saúde, amém. Estou escrevendo porque contar no vivo do agora mais não posso, Deus me escuse. A senhora não estando aqui há muito me faz menor que o menino que viu o pai rumando às infindas águas do rio nosso. O que ninguém simulou entender, nem eu, minha mãe, que aqui fiquei só Deus Nosso Senhor um dia pôde saber o racional. Estou velho.
Mas deixe de mim, num átimo. Como estão a mana e o marido, e o menino aí deles? Já deve de estar moço-homem, arranjado em corpo alto de imbuia, estudando as muitas letras. Do mano a senhora sabe? Não sei pr’onde ele foi, que dispois do sucedido com pai mal me dei conta de que ele se tinha ido. Quisera poder ir aonde vosmecês se encontrassem, já que pr’aqui vosmecês nunca hão de voltar, considero.
Sei que o que não foi jamais que há de ser, minha mãe. Que se a senhora nutre amargor no coração eu mais aceite, que fácil não é.
Só espero que nessas curvas todas do mundo a senhora tenha encontrado seu reto caminho. As calmanças. Que sossego é o que a vida pede – mais não precisa. Falta sinto dos ralhos e dos afagos que a senhora quase na penumbra ofertava. Sinto a coisa tanta, minha mãe, que no poço do peito não designo. E só lamento o que outro fazer não posso. E se a funda razão a senhora deseja saber, lhe digo o que eu mesmo já não sei: que talvez foi o rio. O que o rio demanda ninguém desdiz. A alma alguma desorienta o que o rio prossegue.
Fiz o que fiz, minha mãe. Sei que a vida já me passou por todas as rugas da minha cara, e coisa pouca há que indagar. Sei que ela vai me cobrar de volta o que não lhe dei, no real da hora. E que o mais agora é simples demoramento, de esperar. Estou tardando, minha mãe. Com força peço perdão ao que fiz a todos nós, incluso a mim. Estou tardando porque o repente não mais me acomete, nos termos do surpreendente. Nem sei se o que sinto é o nível de tristeza ou de saudade, mas dói como a faca cravada na carne. Estou só como a canoa que conduziu pai até a não-beira do rio.
Sei que assunto tal não é de seu agrado, minha mãe. Por isso lhe digo ele por último, no encerrar da letra, palavra derradeira e certeira. Meu pai, vosso esposo, nunca mais vi nem a sombra dele. Creio que ele foi em busca dos rasos do mundo, que o algum segredo ele devia de saber. Pai era iluminado, mãe? Será que será? Doido: não. Que só é doido quem desconhece a razão. E pai tinha mais razão que a gente, mãe. Agarra nessa que é a verdade mais verdadeira que debaixo do céu se fez, por confiável.
Mais não tenho feito da minha estança. Estou aqui, no somente e no vertente. Reza por mim, minha mãe, que nunca deixei de ser vosso filho. Deus tenha compaixão pela fraqueza nossa e cuide resguardar os idos e os vindos.
Que o rio nosso corra sempre, e muitos peixes encomende. Amém.
Com ternura de amor,

Seu filho.

Construção

A mãe a amparava como podia, servindo de apoio para que ela não tombasse a qualquer momento. Ela estava fraca, ainda, mas, se o médico lhe dera alta, é porque ela poderia seguir a sua vida.
Uma enfermeira perguntou à mãe se precisava de ajuda.
– Não, obrigada. – respondeu, a sobrancelha direita arqueada. – Ela está muito bem.
Mas ela mesma sabia que não estava, ainda, ela, Ana Aguiar, que de repente não podia andar sem a ajuda de alguém. A enfermeira, uma senhora negra e gorda e sorridente e com uma aliança de prata na mão direita, entrou por um corredor no qual sumiu, mas ela, Ana Aguiar, ainda ouviu a voz da enfermeira, forte e jovem, cumprimentar uma menina de camisola e rabo-de-cavalo e cadeira-de-rodas que logo apareceu à frente de Ana. A menina sorriu como se ouvir a enfermeira pronunciar alto seu nome fosse um grande motivo de alegria – ela também amparada pela mãe, que a guiava através da claridade sombria dos corredores do hospital.
– Já estamos chegando à porta, filha. – disse a mãe da menina, calma, a compaixão e o amor modulando não só a voz como o jeito lento e delicado de empurrar a cadeira enferrujada.
O chão estava horrivelmente sujo, com algumas manchas escuras que chegavam a formar uma espécie de rastro – alguém deixava seu sangue ali. E ela sentiu seu corpo fraco se retorcer de nojo. Sair dali resolvia pouca coisa na sua vida, ela, que parecia se convencer de que pouca coisa valia a pena na sua vida – mas ela não parecia ter certeza disso. Ela era linda – ainda era? Será que era por isso que todos que passavam lhe atiravam olhares tão surpresos? De repente percebeu como havia tanta gente na entrada do hospital, que aquelas caras lhe reviravam o estômago. De repente lembrou que tinha pânico de hospitais, que não suportava o cheiro de hospitais, que se lembrou do que havia acontecido apenas porque o médico lhe contara pois ela insistira tanto e finalmente quando a mãe foi até sua casa buscar uma troca de roupa para ela sair do hospital ela aproveitou e perguntou e soube que por muito pouco... Sentia as ataduras formigarem a pele, a pele formigando e ardendo, e uma dor estranha no peito, o peito também formigando, a boca, tudo formigando sob o calor de São Paulo, o calor de um dia de verão. Mas a dor passaria, como o medo da morte, como o medo de não dar certo, como o medo de o dinheiro ser insuficiente, como o medo de não conseguir trabalhos por causa da proeminência do osso do nariz cujo nome ela esquecera e por causa da quase ausência de seios, como o medo de que a mãe e a família e as amigas e o namorado que ainda não tinha porque pensava apenas na carreira que teria não sentissem orgulho dela, Ana Aguiar, que inclusive criara esse nome para dar um ar de importância porque havia um trocadilho com águia e ela queria dar um ar poético para o nome que teria na sua carreira que estava em ascensão e já dera algum lucro... Tudo passaria, e ela seria a modelo mais famosa do Brasil e depois atriz e depois iria para New York e depois se realizaria, sim, porque ela tinha planos, muitos, todos eles importantes e urgentes...
O táxi chegou. O motorista abriu a porta. A mãe a amparando. Sempre. Sempre a ampararia. E no fundo sabia que valeu a pena tudo o que fez por ela. Era por ela. Apenas. Foram para casa.

I love to say e-levators

3C273, aqui base Alfa, informe distribuição de cores.
3C273: - Imagens rádio em falsas cores. Ajustando possibilidade de uso óptico. Braço espiral distorcido devido influência gravitacional de galáxia menor em aproximação. Sensores indicam radiação infravermelha de baixa intensidade de gás e poeira interestelares.

Aproximação em curso por NGC 5754 para calcular magnitude e iniciar curso com diagrama Hertzsprung-russel. Corpo tipo espectral AO, magnitude +1,4 . Supõe-se ser Sirius A, estrela quente, aproximadamente 10.000 ºC
Possível observar raias de cálcio na tela principal.

Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr
- NG reporte base Alfa
Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr
- 3C copy?
- 3C na escuta, prossiga base Alfa
Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr
I love to say elevators

- 3C, temos uma interferência de Hackers na onda de frequência de 3,5 Gigahertz.
Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr
- 3C informe posição e situação.

I love to say elevators

- 3C informa: diário de bordo da nave estelar NVGAR – Data estelar 7111. Compartimentos isolados da ala quântica em descompressão. Sistemas de hádrons ativados e em equilíbrio. Estruturas carbono-silício estáveis. Cinturão de asteróides Delta em progresso. Programação autônoma, NHC não-humanóide-tripulada. Missão: cybermutantes NGC 5754 e 3C273 devem abordar grupo de nebulosas das plêiades orbitais 126 mil anos-luz do complexo andrômeda e alfa-centauro, orbitando eclípitica de Io e pouso no satélite em 42 segundos. Ten four.
Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr
- NG na escuta?
- NG na escuta, prossiga Base Alfa...
- NG informe situação:
- Descrição de atividades em curso: Sinapses de nêutrons avaliada. Recarregando campo eletromagnético e redirecionando para 120,3 Gauss.
Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr
- NG, Base Alfa detecta interferência de rádio pirata em ondas formato freqüência modulada FM: Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr...E aquilo que nesse momento se revelará aos povosSurpreenderá a todos, não por ser exóticoMas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio...

- Alfa, o que significa ...povos.
- NG, povos está definido no SIG – Sistema de Informação Gerenciada, índice AAA2345.
- Módulo não acessado.
- Procure então o tópico SAD – Sistema de Apoio ‘a decisão.
- Positivo. Módulo acessado por NG. Povos: Scorm – Shereable content object reference model – modelo de referência a objetos compartilháveis de conteúdo.
- Nanotecnologia a serviço dos fluxos, NG.
- Ciente. Câmbio.
Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr
- Alfa, do que se trata esta interferência, câmbio?
- NG, há uma pipa enroscada no cabo de fibra ótica de nossa antena de transmissão.
Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr
- Vai Zé, puxa a rabiola...Rrrrrrrrrrrrrrrr...puxa...agora
Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr I love to say elevators
- NG, parece também ser interferência na faixa de 100 Megahertz, provavelmente telefonia celular:
Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr: - não, pode deixar que eu levo, ... o quê? ... não tô ouvindo.
- Peraí, deixa eu sair do elevador....melhorou agora?
- Melhorou – o que você pediu para levar?
Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr
- Cara, você precisa trocar esse seu celular. É uma bos....Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr
- Eu troquei o chip a semana passa....Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr

- Base Alfa, solicita continuação da descrição:
- Positivo. NG informa: trens de pouso acionados e leitura cromática das inflexões do campo gravitacional em 8G.

- 3C, localize distância de aproximação, over.
- Positivo Alfa. Arqueamento do campo de fótons em curso. Etapa de colisão em desaceleração.

- Base Alfa?
- Prossiga NG
- O que significa bos...Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr
- Curse SGA – sistema de gestão de aprendizagem – item FFF167.
- Positivo: Bos e mer informados por ESP – e-learning solution provider referem as 1ªs sílabas de vocábulos usados em procedimentos escatológicos excretados de seres carbono-oxigênio como resultado da digestão alimentar. Usados como sinônimos também para ser referir à qualidade de vida. – Exemplo: A vida está uma mer...a vida está uma bos...Cybermutantes não produzem e tampouco referem suas vidas nesta categoria de lógica.
- que bosta!
- Repita, Base alfa...
- Interferência NG, interferência. Desconsidere. Prossiga ajuste de 3C para pouso. Over?
- Over Alfa – Ângulo de aportagem 45º 32 minutos. Início de contagem regressiva:
10 RRRRRRRRRR 9 RRRRRRRRRRRR 8 RRRRRRRRRR 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1,
RRRRRRRRRRRRRRR – Dziiiiiiiiiiiiiiiiiiiii, broummmmmmmmmmmmmm.

NG, 3C, reportem imediata situação, over.
NG, 3C, do you copy?

RRRRRRRRRRRRRR
Positivo Alfa – Fase de pouso concluída. Verificando danos. Vitrais plasmáticos de decodificação mostram espectros variados de baixa intensidade, evaporação com difração de raios X – Espectometria óptica revela sinais de impedância compatíveis com presença de amônia, carburetos e sulfeto de enxofre.
- NG, você ou 3C soltaram um “pum”, over?
- Negativo, Alfa.
- Ok, então deve ser da atmosfera mesmo.
- Certamente, Alfa, Over. NG e 3C informam abertura do portal exploratório da NVGAR e início de contato exterior. Eixo de corte longitudinal mostra atividade de chuva ácida.
Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr
- NG, 3C, copy? Temos interferência de rádio amador, na faixa de 105 Kilohertz
- Tigre Uno, ta indo pronde?
- Valeu Tigre 2, to levando frete para Santa Cruz do Sul.
- Tu tens vale-transporte prá volta tchê?
- Nada irmão. . o bagulho tá uma bagaça Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr
- Alfa na escuta?
- Prossiga 3C...
- O que significa bagulho?
- 3C, priorize lançamento de dispositivo de emissão de sinais para o Hubble. Esqueça o bagulho neste momento. Mande essa bagaça, digo imagens, para o telescópio.
- Alfa, o bagulho pode afetar nosso sistema de condicionamento?
- Negativo, 3C.
- E a bagaça?
- Negativo também 3C. Prossiga na missão sem mais questionamentos. Delete bagulho ou bagaça.
- Entendido. Mensagem enviada.
IO, SATÉLITE DE JÚPITER, POSSUI COMPLACÊNCIA META CIRCULAR E OVÓIDE. DIAGRAMAS TERMODINÂNICOS APONTAM COALIZÃO DE NEUTRINOS DE SPIN NEGATIVO EM DIREÇÃO ‘A LINHA AMARELA SEM ATENUAÇÃO DE SINAL ANISOTRÓPICO DE FLAPELA.
Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr – Alfa informa interferência de rádio de favela:
- E aí mano, tu captastes esse som maneiro?
- O quê? Peguei um som muito irado aqui. Parece dum tal de Anísio que tá vindo pra favela brother! E vem com uns ovos – pode ser granada da pesada véio...Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr
- NG, 3C – recebemos mensagem truncada Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr
Temos interferências de rádio Am – jogo de futebol rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr
...segue Daniel Alves pela esquerda, cruza a intermediária – vai levando – o time do São Paulo se fecha na cabeça da área. O tempo passa – 35 minutos do segundo tempo. Zero a Zero. O timão precisa de um gol. – Daniel toca pra Juninho. Juninho recebe, segura – toca – toca errado. Nilmar controla – vem Neves por trás e...falta, que falta feia - e é falta pra cartão, não é Neto?
- Falta pra cartão, o Neves aliás vai acabar sendo expul...Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr I love to say elevators.
- Alfa na escuta?
- Prossiga NVGAR, over
- Terreno consolidado, amostras colhidas de gás sublimado formado predominantemente por sulfetos. Temperatura de superfície: - 128 ºC.
Acionado streaming para fechamento das quilhas. Pedido de permissão para lançamento e retirada.
- Positivo NG e 3C. Well done. Over.
Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr
- Positivo Alfa.. aguarde...localizado algo sobre a superfície caminhando em direção ‘a nave...
- Confirme NG...
- Objeto não codificado. Parece ser um...um...
- Prossiga NG, over! NG, 3C prossiga, câmbio! NVGAR na escuta, responda!!!
Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr
Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr
“I love to say elevators”?
Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr

Angústia

A solidão, não ter com quem ter.
O calado da angústia. O vazio de estar, do não, o anti qualquer coisa, o não ser, o nada.
A angústia cortante do falar consigo mesmo, do não suprir, aquela do peito encolhendo, cada vez mais apertado. Uma dor calada que pára na garganta.
Quem sabe um outro ouvido atento para lhe aliviar a dor?
Não, talvez hoje não.
Quem sabe um amigo atento para lhe fazer sorrir?
Não, hoje não. Outro dia talvez.
Quem sabe alguém também só para fazer companhia à solidão de um com a do outro?
Acho que sim. Hoje pode ser, embora a angústia não venha com a solidão, ela também não se vai com palavras. Quem sabe cozinhá-la com outra angústia ou com a tristeza de alguém só, quem sabe trocar emoções como quem troca figurinhas – uma conversa banal, mas a expressão sincera e silenciosa de respeito à dor alheia: “Eu trago a tristeza no peito”. “E eu tenho uma angústia aqui parada”.
Assim, em silencio, as dores se reconhecem e silenciosamente fazem companhia uma à outra, deixando os mortais transeuntes livres para dar um passeio.

Carta ao homem que se foi

Você se foi, se foi sem nunca ter ido, mas se foi.
Era um dia quente, sol alto, céu azul com poucas nuvens, os meninos brincavam no terreiro e você pegou a canoa e se foi.
Não sei dizer o que senti naquele momento. Acho que adormeci e fiquei ali, parada, imóvel na beira do rio, olhando, olhando, olhando você partir.
Daquele dia em diante sequei. Me tornei uma mulher seca. Uma mulher seca na beira do rio. Seca por dentro e por fora. Secos os olhos, seco o peito, seco o corpo de qualquer desejo.
Gosto de me lembrar de como éramos felizes quando tudo entre nós era novo e desconhecido.
Será que você na imensidão do rio se lembra das nossas brincadeiras entre as roupa guarando no varal? Das tardes em volta do pé de ingá na beira estrada? Do pôr-do-sol vermelho que se via do alpendre de nossa casa?
Naquele tempo seu corpo era o único rio que eu conhecia. Rio caudaloso em que navegava, me perdia e me afogava. Do teu sorriso brotava o mundo e de mim, de mim brotava apenas encanto.
Mas agora você se foi. O rio te levou, te guiou para outras margens.
O pior, o que me dói e me consola num só tempo é que ainda continuamos juntos, porque não é preciso estar perto para estar junto. É preciso estar dentro e você está dentro de mim. Dentro do meu ventre. Você é o homem que não vou parir.
Mas deixa pra lá. Deus sabe o que faz, você sabe o que faz e se a vida quis assim, se o rio te chamou, que seja e eu vou continuando aqui: criando os meninos, cuidando da roça, fazendo preces a Nossa Senhora da Abadia e ouvindo ao longe no fim do dia aquela cantiga que você gostava tanto e que agora parece que ecoa dentro de mim: “mas apesar de tudo desfeito/ de tanto sonho morto que/ num tem mais jeito/tombando a ladeira/ já pela descida/ na tarde da vida/rompo satisfeito/ foste na jornada/ a jornada perdida/ meu amor pretérito mais que perfeito.”[i]



[i] Trecho da canção Deserança de Elomar Figueira de Melo.

Totonha

Nunca cheguei a saber como nasci, como e quem me fez. Só me dei conta que eu existia, quando vi, ao meu lado, numa banca de feira, coisas parecidas comigo. Parecidas sim, mas não iguais. Tinham cabeças arredondadas, maiores ou menores, mas fundas e com cabos bem mais longos do que o meu. Só soube do meu uso, depois que alguém me levou para casa, carregando-me em riste como um troféu. Agora eu sei quem sou e estou contente.

Estou aprendendo a distinguir os sabores, os cheiros e o roteiro de minhas intervenções nas panelas desta tal Tônha, a quem tanto se dirige a mulher sem nome que me comprou na feira. Sem nome ou muitos nomes? A criançada vem correndo pela cozinha roubando guloseimas e a chamam mãe, mamãe, manhêee. O único homem que raramente passa por aqui diz “querida”, e ela atende. Mas um nome ela deve ter: quando fala com Antônia, Antônia responde sempre “Sim senhora” ; às vezes diz “Dona....” mas depois de dona fala alguma coisa incompreensivel como se a própria Antônia não soubesse o que é, pois enrola a língua e só pronuncia umas últimas letras, ...rela,...mela,...gela, sei lá.

É aquela senhora-querida-mãe-manhee que passa pela grande vasilha de louça onde eu moro junto com espumadeiras, conchas e peneiras; me tira de lá, me recoloca, cabo adentro, cabeça para fora, e reclama:
“Tônha, essa não é uma colher de pau qualquer, é uma espátula de madeira!”
“Sim senhora”
“Já disse Tônha, que se você coloca minha espatula com a cabeça para dentro, ela nunca vai secar direito e acaba mofando justo na parte que entra na minha comida!”
“Sim senhora - e bufa baixinho – chata..”

Mas eu gosto mesmo quando essa Dona-não-sei-o-que me usa para aquele mingau especial que só ela faz. Me pega com suas mão leves, com um jeito muito especial de me segurar com o polegar e o indicador na metade do meu cabo, e, unhas cravadas na palma da mão, os outros três dedos bem enrolados apertadinhos como fossem um tambor, que ela usa para , de vez em quando, dar um impulso mais enérgico ao meu rodopiar dentro da caçarola. E lá vou eu raspando o fundo com minha parte final, reta e mais fina do resto daquele retângulo lisinho e chato, que forma minha cabeça. É muito quente este mingau, mas pelo menos não tão irritante quanto o frigir dos refogados da Tônha. As laterais de minhas bordas catam e empurram para o centro o pouco que começa a grudar nas paredes. Sempre no mesmo sentido, da direita para a esquerda até o centro, da direita para a esquerda até o centro, e vai, e vai; só de vez em quando ela inverte o caminho, mas só uma vez: é quando as bolhas do mingau crescem, se rompem e, bufando soltam o vapor: “pppffff,pppfff. Eu não devo deixar que isto aconteça; é por isto que me invertem o caminho. Se o vapor sai, o mingau engrossa antes da farinha estar cozida. É o meu chchchchtt, chchchtt, no fundo e chchchtt,chchchtt nas paredes, que achatam as bolhas e as anulam. Eu não consigo ver o rosto daquela senhora-manhee-querida, mas sei que quando isso acontece ela está feliz.

Outra coisa que me agrada é que nesse mingau não tem sabores nem temperos diferentes, eles só vão naquilo que – depois – será acompanhamento. Assim me sinto mais limpa, incluso porque a senhora-querida-mãe-manhee, faz questão de me lavar, em muita água corrente: com uma escovinha retira todo o grude, com poquissimo detergente – e rapidamente- esfrega minhas paredes e meus contornos, com seus dedos delicados; é quase uma caricia . Ah, sim, muitas vezes antes de abrir a torneira ela me lambe e estala a língua. Um dia ela chegou a dizer. “É assim que se faz uma boa polenta” e tenho certeza que ela estava sorrindo.

Sabonete

Penso em ti como parte pulsante do meu corpo. Gosto de me envolver em ti como bolhas flutuantes e o cheirinho de nosso pacto. Deleito-me no seu corpo dolorido depois de um dia inteiro de labuta. Esqueço-me dos meus sonhos pelo prazer de me deitar em suas mãos. Afogo-me no seu colo e peço seu dengo como um bebê em suave acalento. Desfaço-me. Apago-me.

Nossos pequenos momentos juntos embriagam-me de puro prazer. Inevitavelmente diluo a transparência do meu ser em gotículas de suor salgado. Espero-te ao anoitecer e de leve encanto quando o sol clama pela manhã. Não reclamo dos poucos minutos a sós, pois entendo sua independência. Não nego que gostaria de ter mais e mais de ti. Seu porto, seus braços, seu rosto, suas coxas, seus dedos...

Sempre guardo um sopro de espuma para esvaírem suas lágrimas. Escorro-me dos seus dedos e morro aos seus pés. Esqueço-me. Mostro-me nos morros de sua pele. Tato saltitante em busca do seu aroma verdadeiro. Dissolvo-me completamente, morrendo-me a tirar o amargor da sua pele.

Vênus

Dois namorados discutem, reagem, lutam em suas frentes de batalha. É guerra. E como toda guerra, é injusto o passar do tempo. Descontrolado, ele lança a mão ao vento e num bofetão orquestrado põe-se na razão da fúria sem pensar duas vezes. Ela não reage. O tempo para. Paralisado, ele a vê pálida sob a cinza lua, seus cabelos balançando ao vento, seu semblante cru refletindo as cores da noite na rua central, cores quentes e frias diluindo o vermelho das faces. Sob as luzes das boates, ela muda de cor. Muda a cor da pele, dos cabelos e dos olhos. Ela é só rosto. Todos em um.

Não se sabe se ela ri, chora ou luta. Sabe-se que ela muda a cor da sua face blasé. O momento que gostaria de esquecer, seu erro, sua injúria. Ela, estática. Imóvel, absolutamente pura no meio de todo o resto da humanidade. Ele a ama, de fato, por sentir que o bofetão doeu mais na alma dele do que na dela. Por saber que sem ela seu mundo seria daltônico-manco e que nada apagaria da face dela o rubor do tapa que ele proferira.

Por fim, no interminável nascer do dia ele descobre que ela ganhou a guerra sem desperdiçar nenhuma munição. Ela é, por si só, uma deusa que suporta o erro do homem, mas jamais o esquecerá. É dela o amor ou o ódio e é ao redor dela que o mundo gira.

Vida

Vida linear, absorta, amorfa, insossa,
Sabor sem gosto de uma brisa sem frescor,
É assim de lado, apagado, mastigado,
Não desafia, não vence, não sofre, não sente,
Rotina, burocracia, hierarquia e constrição,
Palavras fracas reunidas em dez passos de uma cartilha vulgar,
Um dia de cada vez, uma vida para todos os dias,
Sem ditadores, auditores, coordenadores, opressores, proprietários,
Democracia, máquina, cartão express,
Mídia, informação, combinação, alienação,
O som, o toque, o cheiro, o gosto, o olhar,
Diluição em pixels de baixa resolução,
Cinza vida sem abolição,
Escrava de si mesma,
Sem direito à anistia,
A vida pifa ali na esquina,
É retida por sucessões de vírgulas.
Poema Rio

Meu tempo é rio,
que levou minha vida se rindo.
E eu, riachei tanta luta
que fiquei assim riando
em voz líquida de rio.

Lívia

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Descobri esta música ontem. É linda! Alguém conhece?

Terceira Margem do Rio

Composição: Caetano Veloso/Milton Nascimento


Oco de pau que diz:
Eu sou madeira, beira
Boa, dá vau, triztriz
Risca certeira
Meio a meio o rio ri
Silencioso, sério
Nosso pai não diz, diz:
Risca terceira

Água da palavra
Água calada, pura
Água da palavra
Água de rosa dura
Proa da palavra
Duro silêncio, nosso pai

Margem da palavra
Entre as escuras duas
Margens da palavra
Clareira, luz madura
Rosa da palavra
Puro silêncio, nosso pai

Meio a meio o rio ri
Por entre as árvores da vida
O rio riu, ri
Por sob a risca da canoa
O rio riu, ri
O que ninguém jamais olvida
Ouvi, ouvi, ouvi
A voz das águas

Asa da palavra
Asa parada agora
Casa da palavra
Onde o silêncio mora
Brasa da palavra
A hora clara, nosso pai

Hora da palavra
Quando não se diz nada
Fora da palavra
Quando mais dentro aflora
Tora da palavra
Rio, pau enorme, nosso pai

A voz de uma pedra

Sou pedra. Falo feito pedra bruta,
Dura, tão dura igual palavra dura,
Palavra pedra, dura, forte e pura.
Daqui não saio, tem que ter disputa,

E pedra bate sempre bruta, forte,
Impenetrável, grave, tesa e brava,
Massa pesada, voz que é bruta clava,
Som estridente de pavor e morte.

Tenho vontade pétrea impenetrável,
De duros sentimentos, maleável
Nunca, teimosa sempre, sou teimosa

E provarei para vocês agora.
Posso virar estátua que decora,
Mas permaneço toda pedregosa.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Eu vim, e você me tomou pa si. Corri, fugi pra dentro.
Teu frio sossegado, pequenas variações afora os dias de tempestade.
Criei em ti uma trilha e todos terminaram por adivinhar uma terceira margem tua.
É minha hoje, unicamente, essa terceira.
Fui eu que nos entremeios do meu sofrimento e delírio - também eu tive um pai - criei a minha raia. Tão particular e tão exclusivamente escancarada.
Olha, faz saltar os teus peixes, encena o espetáculo dos troncos arrebatados pra, quem sabe, eu fazer menos vista entre aqueles que foram meus.
É esse um homem que escolheu a solidão de estar em sua mais profunda raiz. Eu vim daqui, meu pai veio, e veio o pai do meu pai.
Nada eu tive de garantia. Nada de abrigo. Não deve ser o meu filho a seguir esse caminho.
Escute, estou te pedindo, espero há tantos anos.
Me ofereci pra que você me engolisse tempos atrás, pra passar de mim pra você a responsabilidade da minha sina. Assim foi com eles, os de antes de mim, desde que estamos aqui.
Pois bem, me ouça, olha, me devore.
Me dê um destino de morto encharcado
desaparecido pelo fim eterno da sua minha terceira margem
pra quando me olhar o meu filho
ele que também tanto espera
quando ele me enxergar translúcido
e sete palmos acima da água
possa ele correr com a velocidade de um velho filho
e romper com esse fardo
e morrer em terra firme seca
e dar cabo dessa nossa linhagem parda, maldita e sem razão.

Carta ao Rio!!!

Prezado Rio


Devo te confessar que naquele momento crucial de provação o medo apoderou-se de mim, com tal ímpeto que fui incapaz de cumprir o trato que fizera com meu pai. Não tinha compreendido o valor de minhas palavras. Explico-me melhor, eu não estava preparado para tomar o lugar dele naquele momento, e numa atitude covarde fugi.

Na verdade não fugi dele, estava fugindo de mim mesmo sem o saber naquele instante, inutilmente é claro, pois não há como escapar do destino. Logo percebi, e o remorso, tal adaga afiada fincada em meu coração, começara a arder profundamente no fundo de minha alma, que começou a sangrar muito. O sangue não estancava e todo meu ser inundava-se de arrependimento e angústia.

O que fazer diante de tal estado? Eu me perguntava diariamente com o propósito de estancar de vez essa ferida que já me debilitava por inteiro, me deixando fraco e lânguido. Aos poucos, o causador desse sofrimento ia me devorando, e ao me olhar no espelho via os traços da destruição.

Ó Rio, o meu corpo está fraco, muito fraco e já não tenho mais forças, só me resta energia para empurrar aquela mesma canoa estreita que meu pai fez e seguir seu curso. Sei que devo ir a seu encontro, e assim o farei, mas sinto que não estou preparado.

Muitos me disseram que não estavam preparados para a viagem derradeira, mas quando chegou o momento não se recusaram a embarcar em suas canoas e esperar seu destino. Para que fugir do inevitável? Não adianta mesmo.

E no final não restava mesmo outra coisa a fazer, e como eles, caminharei em sua direção sem mais questionar, já não me resta alternativa mesmo, e além do mais estou profundamente cansado e não vejo a hora disso tudo acabar. Portanto, pode me esperar que irei a seu encontro sem demora.

Espero que esta seja uma viagem agradável!


O Filho do Homem da canoa

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Carta ao Tio Cícero

Estimado Tio Ciço

Esperanceio que meu estimado Tio, mais Cleonice, Deoci e Nivonildo estejam muitíssimo bem. Aproveitei Claudecir, o escambeiro de sal e apetrechos, prá levar esta carta. Ele sempre tem trazido também notícias alumiadas dos seus e dos conhecidos nossos.
É pois então que proseio esta justíssima benção corridamente em nome de todos do lado de cá.
Esta carta é para lhe dar conta da passagem que estou pronto a fazer. Tenho no Tio , como é bem sabido longamente, admiração e devoção.
Pois que agora tive ideiando, conforme combinado bastante antes, em ir-me indo, vestindo-me de Rio. Quero então falar-lhe daquela canoa que só em ti posso confiar tal construção. Lhe digo de uma canoa que seja de um talho só de nobre Nogueira seca, calado médio e que seja eu seu único passageiro; proa agulhadinha prá bem deslizar e popa quebrada em quadrado prá modo de sustentar a cadeira de tabuinha.
Tio, se é de seu gostar, lhe peço construir esta proeza de que toda as águas e redondeza possa se admirar. Só lhe peço o reservado . Sabe como penso e como pensa o povo destelhado: caçoa antes do dia de ouro. Quanto a eles fique o Tio tranquilinho que o Rio também castiga de quem zomba. É do nadador zombadeiro que ele gosta e nas curvas e torvelinhos leva o incauto pro sumidouro.
Eu não peleio com o confundimento que o povo faz, muito menos com a ciência que o homem for capaz. Apenas faço o que da lenda é arrazoado. Não me ponho de arrogado. Não tenho advogado nem capataz.

Eu sou homem de Rio e de superfície também.
O dia em que vou indo ainda ninguém sabe com certeza, o dia mais tarde vai ser o dia em que o Rio me leva prá profundeza.
Talmente como no dia do meu pai, seu irmão, já corria de longe a estória do Rio e por ele nossa afeição. Não é tardar então me preparar teimosamente prá continuar tal tradição.
Só não conte, Tio Ciço, com meus olhos que já quase viraram redemoinho; minha boca a toca do bagre; minha pele a escama do peixe grande; meu pulmão as foles dos peixes; minha batida de coração as marolas vagarosas que vão e voltam da margem. Minhas lágrimas já não são mais que as do Rio e minha passagem tal qual a água que por ele desce.
Meu corpo já não nada senão as curvas do Rio, meu xixi seu aguaceiro, minha pele suas margens, os capins meus pelos, meus bichos as rãs e sapos e a lua cheia não faz nada em mim que não faça nele. As pinguelas e pontezinhas que cruzam são as pessoas que já passam por mim também: algumas nem se apercebem, outras se demoram um pouco mais.
Sumo, de vez em quando, como evapora da minha superfície o suor e evapora do Rio sua água quando o sol arde logo de manhanzinha. Minha aperreação é a pororoca e minha apreciação é a calma da correnteza que corre no tempo que deve.
Eu então, estimado Tio, me vou com ele. É a garantia dele estar sempre vivo conformante a lenda. Quando eu for, todos vão me conhecer, mas só o Rio me sabe. Entrementes, me sabe mais do que me sei.
Por isto, Tio Ciço, não bote reparo na minha ausência, nem idéie que ela será falimento para a família. Eu nunca terei ido, de verdade, na canoa; nem meu Tio, terá feito, de verdade, esta canoa.
E, se um dia a mãe assuntar, na cantiga de ninar, pode observar que eu estarei mais perto do que ela pode imaginar.
O dia será aquele que eu quase sei e o retorno, não sei. Mas sei que este Rio me é reservado. Eu e ele conforme acordado: somos de cada um o trocadilho acertado – nossas mãos são uma só e nosso destino perpetuado.

un

no meio do sanduíche ainda no trabalho na hora do almoço
saltou a criatura:
não posso mais ser inventada por você. estou desexistindo.
não pegou suas coisas e saiu.
branca na rua cristalizada de gelo e carros, percebeu o sangue vibrando por dentro dos dedos, debaixo de unhas e anéis - - escarlate roxo e prata
sentiu a ida e a volta nas veias, olhou bem de perto por algum tempo e se impressionou com uma coisa que nunca tinha percebido. e que acontece todo o tempo
pediu uma bebida quente, mais fria que o ar em volta

uma vez ficou na dúvida
desconseguia não tremer
suava
prendia e reprendia as fivelinhas

eis a criatura, mergulhada em xícara de café, abraçada na colherinha:
sua dor passou, seu ódio se esqueceu, seus cabelos cortados por ela mesma cresceram,
e seus dentes bateram de pavor noturno
e temperatura baixa

porque era quase só um lugar entre a barriga e o peito
que ainda tinha calor nesse dia.

um nada muito
muito silencioso
de não saber
onde pôr as mãos

que são só as extremidades de todo o resto enorme embora pequeno
a saber onde enfiar
em dia extraordinário,
de descoraçonabilizamento

a criação desejou estar numa casa quente
pensou em voltar porque tinha uma pergunta a fazer
e depois saltar do teleférico em movimento
mas perguntar não ajeitaria
nem o estômago de ningém voltaria pro lugar,
nem faria mais calor que isso.

respirou bem forte o ar que existia

então o café terminou sua criatura,
que sentiu os dedos correndo pelo sangue,
e o sangue subiu as escadas de costas,
a escada soltou as fivelinhas,
as fivelinhas guardaram os óculos e
as lentes desconcentraram no trabalho da tarde.

Mas aí, mas. Mas aí que sensação é essa agora. De que tudo ao contrário.
De que fui eu que criei você

?

quarta-feira, 3 de junho de 2009

O nascimento de Vênus

Manhã de domingo, calor.Um leve incomodo no ventre. A noite havia sido agitada: sonhos e pesadelos, medo e excitação.
Ela se levanta, uma estranha sensação percorre seu corpo, se olha no espelho demoradamente e meticulosamente. Apalpa seu corpo. Os pequenos seios se insinuam pela camisola fina. Os cabelos curtos mostram a curva do pescoço.
Olha-se no espelho mais uma vez e se descobre bonita. Sorri.
Os olhos faíscam, o ventre dói e ali no espelho, não mais se vê, é outra. Outras mãos, outros pés, outro ser.
Vê-se mulher e o corpo se contrai bruscamente. Se contorce com a dor mas sorri e compreende que naquele instante morre uma e nasce outra.
Morre a menina e nasce a mulher no sangue quente que escorre por suas pernas.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Dicionário

A...Arsênico...Não!
B...Bitucas de cigarro...Não!
C...Crucificação...Não!
D...E...Empalamento...Não! Não!
F...Facadas...Hummm...Não!
G...H...I...J...Jogar de um precipício...Interessante...
K...L...M...Mutilação...Não!
N...O...P...Q...Querosene... Não! Não! Não!
R...S... Sentir. Será? Sina de Serial Killer.

Gabriela

Texto Rebeca inspirado na pintura de Dalí

Adriana e Fernando eram casados há 7anos. Depois do ininterrupto investimento em cursos de graduação, mestrado, doutorado, NBA, línguas, viagens e tudo aquilo que hoje não assegura, mas é primordiais ao candidato que não quer ficar fora do mercado de trabalho; da compra do apartamento num bairro de classe média alta em São Paulo- Capital; de um chalezinho em Campos de Jordão onde passavam os fins de semana; carro do ano; pequenas compras em obras de arte, obedecendo aos pais dele, que o incentivavam a esse tipo de investimento. Em comum acordo, decidiram que estava na hora de terem um filho.
Ela abandonou a pílula e começaram a praticar sexo com freqüência, mais do que o faziam anteriormente. Era um sexo físico, anímico e espiritual: cheio de pornografia, amor, escândalo, palavras esdrúxulas, horários indevidos para um casal que trabalhava doze horas por dia e principalmente em lugares proibidos. Inúmeras vezes saiam do trabalho para se encontrar num motel, nas escadas escondidas dos shoppins centers, até nos banheiros de restaurantes, nos elevadores, não tinham censura para praticar o que mais gostavam, pensando na vinda do filho. Certo dia, o chefe de Fernando, desconfiado de suas saídas constantes, insinuou se ele tinha uma amante.
Fora isso, todas as noites o exercício do prazer se fazia presente e muitas vezes, pediam uma pizza para não perderem tempo em esquentar a refeição, por a mesa, lavar os pratos; dormiam exaustos e perdiam a hora no dia seguinte. Mas sempre valia a pena, diziam satisfeitos!
O que Adriana mais gostava depois de certificar-se que ele havia ejaculado dentro dela, era na próxima engolir seu sêmen, pois isso tinha um gostinho de intimidade, de aceitação, de ser especial, que levada os dois ao delírio! Depois então que buscou informações que o sêmen tem valor nutricional e calórico de 6 calorias e que é rico em proteínas, servindo até mesmo como uma ótima máscara facial, ficou empolgada até demais.
Começaram a ficar experientes e organizados que além de praticarem,
liam livros, teses, documentários, filmes de:
de Kama-Sutra;
orgasmos;
sexualidade;
planejamento familiar;
possibilidades de posições inimagináveis;
a importância de uma boa lubrificação;
a busca do ponto G;
a introdução dos acessórios e dos objetos usados com imaginação que provocam e estimulam fantasias;
sexo oral;
a higiene como tópico crucial;
as preliminares bem feitas;
as informações para o sexo seguro;
a beijo como elemento verdadeiro;
o conhecimento anatômico do corpo humano;
etc, etc, etc ..................
Após dois anos de tentativa frustrada para o tão esperado filho, a relação amorosa e sexual apimentou a união de tal forma, que estavam decididos a largar o emprego e abrir uma “escola” de sexologia para casais, com o intuito de destruir os mitos que cercam o sexo e introduzir um programa prático para alcançar o prazer sexual por anos, sem cair na banalidade, no artificialismo, no cotidiano muitas vezes repetitivo.
Diziam que o sexo é visto, com freqüência, como algo barato, sujo e imoral. Queriam com os grupos que tencionavam formar, mostrar que independentemente das crenças religiosas ou morais, qualquer casal pode e deve praticar sexo, desde que, respeitem a si próprios e seus parceiros, tenham pleno entendimento de todas as conseqüências possíveis e não temam em praticar nada, tendo a consciência de que a sexualidade, a sensualidade, o amor e tudo que você toca, vê, sente, prova e cheire é num encontro amoroso, muito mais que a penetração. Na relação sexual está também a atitude, o estilo pessoal, o corpo e o respeito que envolve o ato numa sublimação vibrante e poética.
Numa noite os dois coincidentemente, haviam decorado uma poesia erótica para dizer ao outro durante o sexo. Estavam em total sintonia, que as poesias escolhidas por ambos, terminavam com a mesma palavra: equilíbrio. Nem se tivessem combinado. O prazer era carnal, oral, visual, auditivo, epidérmico e também espiritual.
A vontade era tanta de ter um filho que além das posses e do conhecimento marcaram consulta com um especialista em reprodução humana.
As tentativas foram inúmeras, durante dois anos sucessivos.
Quando desistiram, depois de dois meses, veio o inesperado: ela estava grávida.
Foi uma gravidez difícil e cheia de cuidados.
Durante os noves meses, os dois se uniram ainda mais. Agora tudo girava em torno da chegada do bebê. Desvencilharam-se de muita coisa, pois o quarto que era escritório, agora estava sendo todo decorado com sofisticação, arte e cuidado para a vinda do bebê.
Até para escolha do nome, buscavam recursos na astrologia, numerologia e psicologia. Caso nascesse menina tinham escolhido Vênus, para menino ainda não tinham um nome definido.
Ao completar nove meses, Adriana começou a ter contrações. A família toda foi para a maternidade: levaram máquinas, câmaras, telefones celulares, filmadoras, tudo para registrar o grande e esperado momento.
Porém, na maternidade, o obstetra não autorizou na sala de parto, nenhum membro da família, somente a mãe.
Depois de duas horas, o médico foi à sala de espera onde todos o aguardavam ansiosos.
Fernando foi o primeiro a perguntar:
- Como é doutor, meu filho nasceu?
- Sim, respondeu o médico.
- Ele é parecido com quem? Eu ou a mãe?
- Você sabe, bebê muito pequeno não tem ainda um rosto definido.....
- Mas me fale, é menino ou menina?
- Infelizmente, nasceu sem sexo.
- Então me diga: tem meus olhos ou são azuis como os da mãe?
- Devo afirmar que seu filho nasceu sem olhos.
- Não tem importância. Conte-me: os lábios são carnudos como os meus?
- Perdoe-me, mas seu filho também nasceu sem boca.
- E os bracinhos: são gordinhos? Tem mãozinhas? E dedinhos?
- Acho que serei repetitivo. Mas seu filho nasceu sem braços e pernas.
- Doutor, fala sério!!!! Como é meu filho?
- Você conhece o quadro de Salvador Dali, O Nacimento de Vênus?. É igual.
- Coincidência doutor! Tínhamos escolhido esse nome, se nascesse menina.
O coração parou cerca de uma hora depois.
O nome escolhido para o atestado de nascimento e óbito para aquele “pedaço de corpo” foi Vênus.
O episódio causou em Adriana e Fernando a esperança de se entregarem para crianças de todas as idades.
O casal desistiu dos empregos e da escola de sexologia.
Venderam tudo que tinham.
Compraram uma chácara no interior de São Paulo e adotaram gêmeos.
Cercados de verde, uma vaca, três cachorros, um porco, inúmeras galinhas, um casal de pavões, duas tartarugas, o rio que atravessava o terreno, o céu limpo de dia e estrelado a noite, um canteiro cheio de violetas e bromélias e um pomar rico em diversidade e quantidade, eram muito felizes.
Após 20 anos tinham 11 filhos e dois netos e não pensavam em parar por aí................................

Texto Rebeca

Um casal demorou a ter filhos. Não porque não quisessem. Tentaram, tentaram vários anos. Fizeram tratamento. Quando desistiram, depois de dois meses, veio o inesperado: ela estava grávida.
Foi uma gravidez difícil e cheia de cuidados. Os pais haviam combinado: se for menina seu nome será Vênus; para menino ainda não tinham um nome definido.
Ao completar nove meses, a mãe começou a ter contrações. A família toda foi para a maternidade: levaram máquinas, câmaras, telefones celulares, filmadoras, tudo para registrar o grande e esperado momento.
Porém, na maternidade, o obstetra não autorizou na sala de parto, nenhum membro da família, somente a mãe.
Depois de duas horas, o médico foi à sala de espera onde todos o aguardavam ansiosos.
O pai foi o primeiro a perguntar:
- Como é doutor, meu filho nasceu?
- Sim, respondeu o médico.
- Ele é parecido com quem? Eu ou a mãe?
- Você sabe, bebê muito pequeno não tem ainda um rosto definido.....
- Mas me fale, é menino ou menina?
- Infelizmente, nasceu sem sexo.
- Então me diga: tem meus olhos ou são azuis como os da mãe?
- Devo afirmar que seu filho nasceu sem olhos.
- Não tem importância. Conte: os lábios são carnudos como os meus?
- Perdoe-me, mas seu filho também nasceu sem boca.
- E os bracinhos: são gordinhos? Tem mãozinhas? E dedinhos?
- Acho que serei repetitivo. Mas seu filho nasceu sem braços e pernas.
- Doutor, fala sério!!!! Como é meu filho?
- Você conhece o quadro de Salvador Dali, O Nacimento de Vênus?. É igual.
Coincidência doutor! Tínhamos escolhido esse nome, caso nascesse menina.

Caminhos

Chorar a existência de não ter um filho.
Aquietar o coração com o poema de Yehuda Amichai: O dia em que nasceu minha filha não morreu ninguém *
Sorrir
Voltar a chorar
Sonhar
O fio da vida, para cada um, traça seu curso gerando elos.

"Hombridade"

“A oferta da emissora do Rio, ainda está de pé?”
A resposta foi um alívio. De improviso, uma pergunta do outro lado da linha leva Augusto a outra realidade.
“Você tem certeza de que quer trocar o teatro pela televisão? Pense bem: a longo prazo pode ganhar mais, ter popularidade, mas televisão é televisão e teatro é aquilo que você sempre quis e onde você já é alguém. Quer pensar mais uns dias?”
Qualquer atraso em sua decisão poderia custar-lhe mais do que a carreira.
“Não,tudo bem. Preciso mudar de vida, ficar longe de arrependimentos. Tudo bem, mande os contratos que eu assino”.
La fora, pela janela, apesar do transito, do barulho, do caos de sempre, vê um dia parado, amorfo, como se não tivesse data, nem hora. Ombro apoiado à vidraça vê a poluição aproximar-se, velozmente, a envolvê-lo em nuvens escuras, ameaçadoras. E inadiáveis.
Como falar com Júlia, como dizer-lhe? Nem procurando entre as falas mais retóricas e batidas dos personagens que já viveu, acha algo decente para usar como trincheira. Esconder-se atrás de literatura: não é assim que se faz, não é seu estilo. Explicar o que? Justificar? Quer ser sincero, só sincero. A vista daquela janela que conhece sua vida com Júlia, começa a escurecer, as luzes pipocam aqui e ali. Tem que ser hoje. É hoje, amanhã a noticia pode ter se espalhado. É agora.
Na frente do espelho do seu camarim, durante a transformação física para a personagem do palco, ele não consegue disfarçar sua angústia. Na porta da Júlia, um suspiro, um curto golpe e lá está o sorriso dela, um cílio postiço na mão, um gesto para que entre. Ao voltar para a bancada, ela mostra o puf onde frequentemente estica as pernas entre atos e ele senta, joelhos no queixo.
Um silêncio rápido e a voz finalmente sai:
-Júlia, não sei o que você pretende fazer, mas.....
-Ainda não sei......-
É a Júlia, objetiva, decidida, pé no chão, segura. Jovem demais, mas madura.
-Eu ajudo em tudo, prometo Júlia, naquilo que você decidir...-
Silêncio pesado, o cílio no lugar.
-Eu não posso Júlia.......-
Ele quer ouvir claramente sua própria voz, antes de continuar:
-Na verdade, Júlia..eu não quero..
O arrastar-se da cadeira e a Júlia de pé. Tira o roupão, entra pelos pé no costume da Leila, caminha até Augusto e junta as pontas do decote, virando de costas:
-Por favor...
O sibilar do zíper, um encolher de ombros à mordida do fecho em sua carne.
Ao virar-se de novo para ele, Júlia coloca as duas mãos naqueles grandes braços agora relaxados. De repente ele parece mais baixo mas, apesar da mestice, seu olhar conserva a dignidade de sempre.
- Eu sei, Augusto. Eu sei. Sem rancor...”

Mulheres

A mulher, ou mulheres que se superam, que rompem barreiras e ainda permitem-se sustentar o belo. A beleza da face, do corpo, do pensamento cada vez mais livre e de suas ações cotidianas.
Mulheres que inspiram mulheres e homens, que sustentam famílias, que carregam empresas.
Mulheres. Ainda sonham ecoar em serenatas. Por mais que haja progresso, mantém na alma feminina a tradição, as bases familiares, os alicerces sociais.
São elas que carregam nas mãos todo homem – pequenino ser – quando este vem ao mundo. Ousaríamos dizer: “Bem vindo ao mundo que eu criei”?Que nós criamos...
É por isso que as mulheres estão se recriando o tempo todo. “Aonde foi que eu errei?”.– Sim, pesa essa responsabilidade de extrair o mundo do umbigo.No umbigo da mulher existe toda a humanidade.
Mulheres. Seu rosto emoldurado perdura séculos na história, ou na memória daquele que te amou.
Mulheres. Não percam a ternura, por mais que endureçam. É seu o cálice sagrado, a divina missão de sustentar o mundo, no ventre, nas costas, ou como aura a envolver-te em atmosfera de Vênus.

Água Seca



Olhe seu moço, que eu juro que lhe digo, e digo por que digo, que é assim, pra modo de vós me entender: que eu me faço de fortidão.
Falo porque falo e tenho olhos do coração: me olhe e veja, que aqui por estas paragens, inté o roçado do Capelão, que nunca que vi tamanha estiagem; nunca passei tamanha precisão.
Inté estas mãos, calejadas de sofridão, cortaram a terra queimada, muito pra baixo do torrão, na busca de água escondida, que minha pele fez cicatriz de tanta poça morta batida.
Mas não me aporrinho, não, qual o quê? Mesmo que até as mãos nem pão tenham pra cortar, continuo meu vagar, campeando a caatinga na fome de água encontrar.
Mais de muitas madrugadas e cem braçadas fiz para procurar, o senhor vá pondo seu perceber, que nesta terra o castigo é o arder. O brazeiro é tanto que inté cobra e “escurrupião” faz desaparecer. E nós vivemos assim, de todo seco e de uma gota à mercê.
Entre um tomar de repouso e aguardo, logo saio eu talmente como faço, pra trazer água para minha mulher e três calanguinhos.
“Arreparre” num doutor que uma vez palavreou que nosso planeta é feito tudinho de água. Prosa tonta. Fiz de conta que não ligo dos homens que botei sismo. É de se lascar, que botaram este tal liquido bem longe deste lugar. Vi falar também dum colírio que se bota nos “óio” prá modo de bem enxergar. Mas este, nem o doutor há de receitar e dar pistas, pois que nós bebiamos tudo antes de curar as vistas.
Mire veja, nunca vi, que triste sonhar, e que aqui não há os tempos da água. Quando chuva há, ela é tosca, seca, que mais “ajudia” o sentimento que nosso pensamento se inclina pra heresia.
Pego logo duas cabaças de olho largo: sou nascido diferente. Fui ter com o pé de goiaba, que de longe eles vem contar; daí se “arretira” um galho feito “furquia”, se lambe e se anda com o graveto. Se põe a andar e conforme o retiro foi se “agrandando” meu coração apertando, na esperançca de ver o tal galho entortar, mostrando o canto da água morar.
Volto iludido, com a boca mais seca ainda; nem uma gota prá cuspir o pó da terra batida do cascalho da caatinga. O gado já se foi.
Olhe seu moço que eu lhe conto que pior morrer de fome, que a sede queima lá dentro do peito.
Duas madrugadas depois recolhi meus apetrechos: alforje de caçador e chapéu de gibeira.
Escolhi a retornança diferentemente: tomei o rumo da trincheira e saí com os dois balaios. Desci a ribanceira. Segui a marcha estradeira.
Os galhos do espinheiro não tiveram brincadeira. Sem dó me rasgavam, triscando o pouco de pele “desaprotegida”. Ficaram que nem peneira.
Eu meio sem vida, no entardecer, desolado, escapei pro lado e orei, o que a benzedeira já tinha me ensinado. Num tinha mais precisão de olhar. Ali água não havia de brotar. Tive mesmo de voltar.
Olhei pras crianças e me angustiei chorar.
Mas homem aqui não chora, pois seu moço, que nesta sequidão de tudo pode lhe faltar. Lágrima não há de ver nem no olho que se encerra. Para o bem, se uma gota ainda fizesse desabrochar, se de meu fole ainda tivesse saído, teria eu, com tudo eles, ela dividido.

Vida real

Não sou Vênus,
Não sou Inez,
Nem tão pouco Beatriz.
Sou menina, mulher,
Santa, mãe, filha
E até meretriz.
Porém, meus caros
Jamais serei atriz.

Maria

Vivia no sul do país
trabalhava na secretaria
era moça de família
tinha lá sua raiz.

Pelo chefe apaixonou-se
E dele se engravidou.

Mudou-se para S. Paulo
Fugindo do preconceito
Da cidade do interior.

Hospedou-se em minha casa
Era eu uma criança
tinha lá meus quinze anos.

Acompanhei o seu drama
vendo a barriga crescer
com ninguém pra dividir
o fruto dessa aventura.

Os dias foram passando
e o dilema aumentando
dar ou ficar com o filho?

Se desse teria culpas.
Se ficasse o que seria?

Saímos todos de férias
ficou ela aguardando
o dia do desenlace.

- Seria homem ou mulher?
- Seria louro ou moreno?
- Com quem se pereceria?
- O que seria de nós?

Ligou da maternidade
pediu minha companhia
e assim voltou para casa:
nas mãos a mala vazia
no peito o leite e a dor
na barriga a cicatriz.

Se não dormia chorava.
Do seio escorria o leite
juntando-se às suas lagrimas.
Ria.

Assim ficamos nós duas
fechadas em minha casa
Noite e dia.

Lá fora o mundo corria
cá dentro amadurecia
eu, ainda menina,
fazendo-lhe companhia.

Fiquei mulher de repente.
De tão triste envelheci.
Eu penso até que morri.

Ora eu era mãe.
Ora eu era criança.

Contei tudo que sabia
de engraçado e encantador
pretendendo aliviar
a falta que lhe fazia
o motivo de tanta dor.

Parecia tudo em vão.
Era grande a solidão.

Foram-se os dias passando
a barriga foi murchando
as lágrimas foram secando,
os seios se esvaziando.

Maria arrumou as malas
beijou-me na despedida
entrou no táxi e se foi
deixando em meu coração
tão funda recordação.

Só muitos anos mais tarde
senti no próprio corpo
o que é ter os peitos cheios
e os braços tão vazios!

Maria, que frustração!
Maria, onde andará?

Cigarro triste

Fumo um cigarro de angustia
enquanto penso em você

De olhos escancarados
persigo a fumaça azul



Acendo um novo cigarro
com um fósforo de solidão
trago a fumaça de tédio
enquanto penso em você

Meu cigarro é muito triste
e eu aspiro sua tristeza
porque sei que ele me diz
que eu não mais terei você!

Tudo azul?

Sim, ela jamais se expressou, nem na infância, nem na adolescência, nem na maturidade, e precisava!
Cuidava da mãe, dos irmãos, dos amigos, do cão, da natureza, mas não se expressava, e precisava.
Seus pés se encolheram, suas mãos se encolheram, não andava, não deglutia, não falava , respirava pela traqueotomia: esclerose múltipla.
Só os olhos azuis a tudo contemplava.
No olho esquerdo: a bondade
No olho direito: a angústia

Tudo azul?

Passagem de Ida

Este ônibus passa na Vila Ida? - Sim, responde o motorista.
Você pode me deixar no cemitério?

ANDY WAHROL E A VÉNUS DE BOTTICELLI

A Vénus colorida, cabelos ao vento, mesto olhar para o infinito, imagem repetida, e repetida, e repetida através dos espelhos que também refletem a luz, muita luz, todas as luzes feéricas do salão. Uma só Vénus, a de fundo violeta que realça o mecheado quase invisível tão na moda desde as “luzes” de Vidal Sasson. Aquele violeta pastoso que combina – melhor do que a Vénus de fundo azul claro - com o turquesa das poltronas giratórias, com o verde água dos aventais das manicures, com o laqueado ocre das bancadas.
Como são despojados esses modernos: não tem mais os dourados nem os veludos da época em que me penduravam, casta, branca, ascética e intocável, nos salões onde minha nudez acariciada por minhas próprias mãos, contrastava com as lingeries pretas detrás dos biombos, escondendo volúpias e transgressões.Aqui, nem pareço eu. Essas mulheres com madeixas arrumadas, são magras, usam roupas, tem cabelinhos curtos feito franjas irregulares sobre os olhos; será fácil afastá-los com um sopro do canto da boca?
E olha essa mulher estonteante que entra agora, esguia, altera, cheia de si, émula de rainhas, dona completa do espaço. Não aguarda recepcionista, senta na frente de um espelho, relaxada: sabe que Alexandre correrá até ela.
Ele vem, olha para ela no espelho e, sorriso afetado, investiga:

- É hoje o grande dia?
- É.
- Que roupa vai usar?
- A roupa não tem nenhuma importância, o cabelo sim.

Silenciosa surpresa.
- É, é o cabelo: quero solto, desorganizado, emaranhado, muito...assim como se eu acabasse de sair de uma cama
depois de umas horas de amor bem louco.
Alexandre agora suspira, escova em riste, mão deslumbrada:
- Meu bem, você vai a um casamento, não a uma sessão de fotos!
É aí que Verônica monta um sorriso modesto e com saboroso olhar de cumplicidade arremata:
- Quem sabe assim dará para perceber com quem o noivo passa certas tardes...
Há um empalidecimento progressivo do violeta nas refrações repetidas dos espelhos, mas Verônica sabe que é impossível um poster piscar.

Texto da Cinthia

Celene, recém-aposentada, perdida e feliz - sem saber o que fazer da vida: levantar a hora que quiser, sem ter que acordar cedo, tomar banho e café, escovar os dentes (nesta ordem) e sair, como sempre, correndo por estar atrasada para chegar ao trabalho.
Entre o fazer e o não fazer, descobre-se com a possibilidade de um diagnóstico cruel: câncer de mama.
Antes que a biópsia seja marcada, liga para aquele pintor que sempre admirou, agenda um horário e toda decidida, pede que a retrate antes de qualquer intervenção cirúrgica, já que ouvira muitos casos de quase mutilação.
Quer registrar para sempre o que em toda a sua vida foi o seu maior orgulho e objeto de desejo, admiração e inveja. Não era o seu rosto, nem seus cabelos, nem suas mãos. Eram os seus seios. Perfeitos como os da Vênus, de Dalí.
“Que brincadeira de mau gosto, hein?”
Mas que não passara de um mero susto e que, dando a volta por cima, Celene poderá exibir na nova parede da fama em sua casa.

Cronossomos




O que é sentir algo que se perde? Será o mesmo que não ter tido?
O corpo que não se sente, sente que mente?
Meu corpo se constrói – assim dito, eu me construo; somos o mesmo - de mim, do tempo e da geografia.
O tempo, observador antipático e cronos, constroem meu corpo mulher, escondido de meus pares: Um desamor outro desrazão. Depois encantam e me anestesiam com jambu.
Encontramos-nus entre a estátua e a bailarina.
Ontem, na mesma hora que agora, descobri as camadas de tinta dos velhos pintores – aqueles ancestrais.
Esta é a arqueologia de como sou ou talvez cromossomos.
Nas camadas do homem e da mulher - que não sei quais são, me inventaram - fazem-se as camadas de tintas expostas ao tempo, às chuvas, aos sóis, às maresias, às ondas, ao oxigênio, aos álcalis, aos ambíguos, amigos, anfíbios.
São lascas de afresco em tom pastel que despregam da argamassa da estátua e vão fazendo descobrir o inevitável: como máscaras finas, encolho ao deixá-las ir caindo - nada ou ninguém cai de qualquer maneira. Sempre haverá uma maneira precisa de cair – e desvelando, a todo momento, alguém que não me é novo – você gostaria que fosse?
Uma cebola descascando-se, parece a mesma, mas é mesmo a mesma fractal muda, muta.
A estátua e a bailarina, frente ao espelho de si mesmas, vêem que não é apenas difícil o difícil movimento da imobilidade, mas também a imobilidade da inquietude e solidez do eterno momento do agora.
Tiradas as roupas, só a estátua não se envergonha.
Essa é nossa semelhança, arbítrio e atropelo. Não vimos a máscara neutra, nem eu, nem os outros; nem meu meio nem meus meios; meu seio, meio fio.
Vimos apenas nós – muitos - sem braços ou sem cabeças; às vezes sem eu(s), às vezes sem ela(s), às vezes cem deles.

O Retorno do Cavaleiro

O Homem voltava da Terra Santa. Em seu rosto percebia-se a marca de muitas e duras batalhas, dor e assombro. Seus olhos eram o espelho do genocídio, quantas vidas tiveram seu fim nesta lâmina fatal.
Sua armadura e sua espada ainda traziam o cheiro de sangue das vítimas, que jaziam petrificadas nas torturantes lembranças do guerreiro.